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A voz distinta do senhor Joaquim

por Catarina d´Oliveira, em 26.04.14

Na rua atolada de formiguinhas atarefadas - a correr para o trabalho, para o almoço, para as compras - ouvia-se uma voz distinta a cantar aquilo que me pareceu um fado arraçado de cigano - sem que exista nesta expressão qualquer tipo de condenação ou maledicência anexada.

 

Segui até à origem das notas que rasgavam o ar já morninho de um dia de Primavera, cheguei-me ao pé dele e perguntei: "oh amigo... diga-me lá, já comeu hoje?".

 

Reparei que ficou meio confuso, mas lá me respondeu com meio sorriso que sim. "E já almoçou? Não quer vir almoçar comigo? Sempre me fazia ali companhia...".

 

Nesta altura então o Joaquim - era assim que se chamava - deve ter achado que eu era maluquinha. Completamente passada da marmita. Disse-me que não era preciso, que estava bem, e perguntou-me a razão do convite.

 

 

"Olhe porque me apetecia fazer uma coisa simpática por alguém. E gostava ouvir a sua história. Mas se não lhe apetece almoçar posso-lhe fazer companhia durante um bocadinho! Pode ser?".

 

Desta vez já não levei nega. Aproximei-me do aparato da bicibleta, três cães e um grande funil que fazia de megafone improvisado para desbravar algum terreno da história do Joaquim.

 

As aparências iludem, pelos vistos, porque felizmente não chama casa à calçada bonita mas gelada da capital. Vive numa loja perto de Santa Apolónia, onde diz guardar uma mota e outras bicicletas como a que hoje o trouxe até à Baixa.

 

"Fui carpinteiro durante mais de 30 anos... mas às tantas comecei a odiar a minha própria arte. Mesmo quando fazemos algo que gostamos muito... quando não somos recompensados, começamos a ficar cansados". 

 

Intrigada com o facto de estar pela rua, comentei a medo: "tem uma voz muito bonita! Mas porque é que está aqui então Joaquim?". Encolheu os ombros. "Gosto da vida que tenho agora... É um pouco solitária às vezes... mas eu gosto. Gosto de cantar, de ver as pessoas... e acho que os estrangeiros gostam de mim!".

 

Durante aquilo que me pareceu quase uma hora ali ficamos a trocar ideias e histórias. Acabei eu mesma por partilhar vivências com ele, o que não esperava que acontecesse, até porque me fez esquecer de atualizar o caderninho que agora carrego sempre para tirar nota destas histórias e estórias que vou ouvindo.

 

Passamos pelo amor, pela juventude, pelo trabalho, pelos estudos, pela família - o Joaquim tem uma filha de saúde! - e novamente voltamos ao amor. "Isto não é só no trabalho... no amor também, especialmente. Temos de nos dar ao outro, mas não nos podemos entregar por completo. Isso é muito perigoso".

 

Assenti sem comentar nada e continuei a ouvi-lo falar do amor de antigamente e de hoje, de corações amados e despedaçados, que parecem igualmente ameaçados pelos "prazeres do momento que hoje as pessoas colocam à frente das coisas realmente importantes", como me descreveu ele. 

 

"Não sei bem se acredito nisto... mas um amigo meu disse-me há pouco tempo que acha que não existe apenas uma pessoa certa para cada um de nós... mas uma pessoa certa para cada momento distinto. Eu sou completamente da velha guarda, que acredita no 'para sempre', na 'única pessoa que te completa'... mas acho que o que ele diz faz sentido de certa forma", disse-lhe eu. Coçou a cabeça e concordou que era uma coisa bem vista. "Mas tu ainda vais voltar a encontrar alguém!", garantiu-me ele com uma segurança que, por um flash de momento, me fez sentir completamente abrigada de tudo.

 

 

Ficámos ali ainda, um bom pedaço, em silêncio, a ver as pessoas passar. Olhei para as horas e vi que me tinha deixado levar pelo prazer de uma boa partilha e que estava, para não variar, atrasada. Quando ia já a meia volta da partida, o Joaquim levantou-se, veio dar-me um abraço e um beijinho, despedindo-se e dizendo que "soube muito bem este bocadinho de conversa. Acho que me sinto melhor do que de manhã, nem sei bem porquê, mas obrigado".

 

Não há que agradecer, porque o que quer que pensava que ia oferecer ao Joaquim quando fui falar com ele, também recebi de volta.

 

 

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