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Vamos todos fazer mais e melhor. A vida (e a aventura) está aí.
Terminado o (muito) necessário período de experiência, fiz finalmente a minha primeira saída como VACA - que é como quem diz, Voluntária da Associação Conversa Amiga.
Depois de uma breve conversa sobre o "test drive" das duas primeiras saídas, pediram-nos sugestões. Tanto eu como o C., um dos outros voluntários que se tornava "oficial" naquele dia, sugerimos a mecânica da rotatividade - atuar em diferentes zonas da cidade ao longo do ano, já que normalmente nos dividimos em grupos espalhados por três ou quatro áreas.
"Não é tarde nem é cedo... como hoje temos algumas faltas n'um dos grupos, resolvemos colocar-te noutro diferente, e assim podes já experimentar outra área e ver o que achas". Porreiro - e lá saí com o meu novo grupo por uma noite, liderado pelo L., e com a companhia do R. e de um estudante de medicina muito simpático que veio experimentar, como convidado, uma noite connosco.
Seguimos para Arroios, e foi lá a nossa aventura da noite, entre o mercado, o jardim e a igreja que albergam, à noite, as pessoas que durante o dia não vemos por lá. Tirando o senhor M. - esse diz que anda sempre por perto do mercado: "sempre que me quiserem encontrar, é só vir aqui. Não vou a lado nenhum". Lá estava ele, deitado a fumar uma cigarrilha quando nos aproximamos.
Depois dos cumprimentos e apresentações devidas, lá ficamos a saber do ponto de situação do Cartão de Cidadão que o íamos ajudar a fazer - uma das coisas que podemos fazer, é facilitar o processo de obtenção de documentação a pessoas em situação de sem-abrigo, e o senhor M. conseguirá o seu novo C.C. sem pagar nada.
Recolhemos os dados que faltavam ao processo entre outros dedos de conversa que nada tinham a ver com naturalidades ou datas de nascimento. Nessa noite o Benfica tinha ganho por margem gorda (numa jornada de véspera de ser Campeão), mas o senhor M. não fazia grande caso... "Ouvi falar sim... mas não gosto de futebol. Não acho graça, ganham dinheiro a mais... prefiro andebol Ou hockey. Gosto muito de hockey".
Enquanto combinavamos a melhor hora para um encontro com a assistente social que o ajudaria na loja no Cidadão, o senhor M. continuava a contar-nos dos seus gostos - como prefere cigarrilhas a tabaco normal, ou acordar cedinho quando o sol ainda nem nasceu a ficar a dormir até tarde, ou a ficar só sentado no jardim que há por ali perto, em vez de andar de um lado para o outro.
A simpatia e olhar terno do senhor M. dificultou-nos a tarefa de seguir em frente para o próximo espaço, mas a verdade é que a hora de recolha já lá ia "amanhã às 5 já estou a acordar... comigo é sempre assim".
Seguimos para a igreja, e por lá fiquei até a ronda terminar, e sentia-me tão à vontade e perdida nas histórias e estórias daquela gente que podia muito bem ainda lá estar agora.
O Zé D. foi o primeiro. Já estava por lá sentado a receber um chá que outro voluntário lhe ofereceu e que agradeceu com palavras simpáticas. O sotaque com que afetava grande parte do discurso fazia adivinhar a origem que não demorou muito a desvendar.
A zona norte da madeira foi a sua casa até, na casa dos 20 e poucos anos, decidir explorar as oportunidades do continente. As aventuras partilhadas em apenas duas horas de conversa foram tantas que me é quase difícil jurar que não o conheço há meia dúzia de anos.
As memórias da pesca na ilha a que chamam casa foram, todavia, as recordadas com mais carinho. "Conheço todo o tipo de peixe, e já comi de tudo. Não há nada como o peixe, e a vida no mar. Se pudesse tinha passado a vida a mergulhar... sem fato mesmo". E lá seguiu entre as mirabolantes aventuras - quando o irmão se amedrontou com a visão de um pequeno tubarão, quando desaparecia horas sem fim para preocupação da mãe que acalmava com desculpas inventadas, o ano que passou na quinta de uma amiga onde aprendeu a conduzir um carro, as fugas para a outra ponta da ilha sem que ninguém soubesse... uma vida cheia de vida quando ainda nem tinha chegado aos 25. Para ele a vida só vale a pena se for assim, vivida no limite das emoções e das possibilidades e dos riscos.
Quanto à sua ilha, à sua casa... "Às vezes ainda vou lá, e visito a minha mãe. Não há nada tão bonito como a Madeira... não há".
Por cá esperou-o mais uma vida de trabalho do que propriamente outra coisa, mas não deixou que isso lhe tirasse a alegria ou a sede da adrenalina "agora não, mas quando era mais novo fazia tudo e não tinha medo de nada. Uma vez tive um emprego onde limpava janelas de um prédio altíssimo. Eu limpava por fora e os meus colegas por dentro. Nunca quis usar cordas... só me atrasavam o trabalho. E acabava sempre quando ainda lhes faltavam dois ou três andares. Por isso antes dizia-lhes sempre: 'no final encontramo-nos ali no café que vou lá estar a beber umas minis'. E estava sempre".
"Deus me livre!!" - até dei um salto de susto, porque não vi o outro senhor chegar e aproximar-se. Tão simpático e acessível como o Zé D., o Zé M. tem, no entanto, um enorme pavor de alturas. "Eu não conseguia... nem com vinho ia lá!".
Aproveitei então que os meus outros companheiros ouviam e participavam alegremente nas conversas do Zé D. para dar algo de mim também ao Zé M. E lá seguiu ele, falando-me dos tempos áureos em que trabalhou em campanhas eleitorais.
"Vivia muito bem, e experimentei muito luxo. Por isso já não me posso queixar".
[fotografia: Miguel Manso; PÚBLICO]
Mas não foi nas experiências de abundância que se revelou mais nobre. Isso ficou para a vida privada, onde fez e faz tudo para proteger os seus. Incluíndo as mulheres que passaram pela sua vida e com quem mantém contacto "Não vejo a razão para deixarmos de nos falar se em algum momento da vida vivemos tanta coisa juntos". Concordei veementemente e louvei-lhe a perspetiva, que o levou a acrescentar: "Quando me separei da minha ex-mulher, o advogado não sabia como nos dividir as coisas. Perguntou-lhe a ela, e ela disse-lhe para me perguntar a mim. Não havia questão nenhuma... ela ia ficar com tudo e nem havia discussão. Era a mãe da minha filha e não a ia deixar desamparada; não preciso de coisas para nada. Posso voltar a conseguir coisas noutros sítios. Só me importa as pessoas que gosto, e só por elas é que faço tudo. Ai de quem se meta com elas".
A noite terminou com esta conversa a ressoar-me na cabeça e a deixar o desejo de voltar a falar com estes dois Zés que me ensinaram tanto em tão poucos minutos. Sobre a importância de saber respirar a vida por todos os poros, de nos embriagarmos nas suas possibilidades sem termos de pedir desculpa ou permissão. E sobre a importância do respeito por quem amamos, sempre.
Continuo a achar que, de cada vez que saio, levo mais deles (e da vida) comigo do que o contrário.
O mundo não pára de girar, e nós não temos de parar de tentar ser melhores uns com e para os outros, e de sermos nós, sempre nós, sem medos.
"Olá estranho/a,
Escrevo cartas para pessoas que não conheço e deixo-as por aí. É esquisito?
Acredito que assim o possa parecer... mas todos somos um pouco estranhos, e talvez seja aquilo que fazemos com as nossas idiossincrasias e trejeitos peculiares que realmente importa, não achas?
Vai sempre haver quem aponte o dedo, ou condene em surdina, mas também aqueles que gostam verdadeiramente daquelas partes de ti que sentes que "deves" esconder. E ao partilhá-las podes fazer com que também os outros sintam segurança para mostrar as faces que acham que os outros iam etiquetar de estranhas. Especialmente se os tratarmos com amor e respeito.
É difícil ser vulnerável, mas aproxima-nos dos outros, se nos permitirmos a isso.
Abraça a tua "estranheza" e a dos outros.
Pertences aqui, e és uma parte única do mundo!
De alguém que acredita em ti."